O Brasil, o Irã e o Protocolo Adicional
José Goldemberg*
José Goldemberg*
"O episódio acabou de forma um pouco humilhante, com o isolamento do Brasil e da Turquia no Conselho de Segurança"
Nas últimas semanas a atenção da imprensa foi dominada pela votação das sanções contra o Irã, no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Essa nova rodada de sanções (a quarta) tem por objetivo forçar o Irã a abandonar o enriquecimento de urânio em níveis que lhe permitam, com facilidade, construir armas nucleares.
O Brasil votou contra as sanções após ter tentado, com a Turquia, negociações com o Irã, que foram consideradas uma tática iraniana de continuar a ganhar tempo. A atuação brasileira foi considerada bem-intencionada por alguns, ingênua por outros, mas deu ao presidente Lula a oportunidade de tentar se projetar no cenário internacional. O episódio acabou de forma um pouco humilhante, com o isolamento do Brasil e da Turquia no Conselho de Segurança e com declarações paternalísticas da secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, consolando o Itamaraty pela derrota sofrida.
Enquanto isso ocorria, teve lugar em Nova York a conferência dos membros do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), que se reúne a cada cinco anos e cuja agenda era tentar acelerar o desarmamento nuclear, objetivo central do TNP. Nessa reunião ficaram mais claras as razões por que o Brasil se aproximou do Irã, o que é incompreensível para a maioria dos observadores, exceto por razões ideológicas: ambos os países se opuseram à adoção compulsória do Protocolo Adicional da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
O que é o Protocolo Adicional?
O TNP foi o resultado de uma barganha diplomática, que ocorreu há mais de 40 anos, pela qual os países que não tinham armas nucleares, em 1967, renunciaram à sua posse. Em retorno, receberam o "direito inalienável" de usar energia nuclear para fins pacíficos (artigo IV do TNP), para o que poderiam receber tecnologia dos países que, na época, tinham armas nucleares (Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra, França e China).
Por sua vez, as potências nucleares comprometeram-se a "negociar em boa-fé" (artigo VI do TNP) medidas que levassem ao desarmamento nuclear. A transferência de tecnologias e materiais nucleares para os países não-nucleares, contudo, deveria estar em conformidade com as regras de salvaguardas estabelecidas (artigos I e II do TNP) pela AIEA. É aqui que se origina o problema: as regras adotadas originalmente pela AIEA não se mostraram suficientes para impedir que vários países não-nucleares, como Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte, tivessem acesso às tecnologias necessárias para fins militares e desenvolvessem armas nucleares.
Por essa razão, mais recentemente, a AIEA propôs novas regras, contidas no Protocolo Adicional. De acordo com as velhas regras, a agência poderia inspecionar apenas atividades nas "instalações declaradas" pelo país, de modo que instalações secretas não poderiam ser fiscalizadas.
O Irã usou e abusou dessas regras durante anos, como se sabe, e por essa razão existem sérias suspeitas de que deseje efetivamente construir armas nucleares. Pelo Protocolo Adicional, podem ser inspecionadas quaisquer instalações, não só as declaradas, mas também as que fornecem equipamentos e outros produtos (como minas de urânio e equipamentos para usinas de enriquecimento) às instalações nucleares propriamente ditas.
Apesar da pressão crescente, Brasil e Irã não aceitaram o Protocolo Adicional, que foi objeto de uma das decisões unânimes da reunião das partes do TNP, em Nova York, em maio.
Em relação ao Brasil, suspeitas quanto à intenção de produzir armamentos nucleares não existiam até recentemente, sobretudo porque foi feito, em 1992, um acordo com a Argentina para inspeções mútuas que é considerado exemplar e deu aos dois países grande credibilidade internacional.
Apesar disso, o Brasil recusa-se a aderir ao Protocolo Adicional, levantando a bandeira da soberania nacional e argumentando que inspeções intrusivas poderiam levar à violação de segredos industriais. Esse argumento só é empregado por grupos mal informados sobre a natureza real das inspeções, que podem perfeitamente proteger tais segredos (se existirem).
O verdadeiro significado do TNP não é dividir o mundo entre "os que têm armas nucleares" e os "que não têm". Ambos os grupos têm responsabilidades na busca de um futuro sem armas nucleares.
Por mais distante que esse objetivo possa parecer, não há dúvidas de que progressos estão ocorrendo: o número de ogivas nucleares dos Estados Unidos e da Rússia, que chegou a ser superior a 40 mil em cada um desses países, é hoje menor do que 2 mil em cada, e novas reduções são previstas nos próximos anos.
É por esses motivos que associar-se ao Irã não atende, a nosso ver, aos interesses permanentes do Brasil.
As declarações recentes do vice-presidente da República e do secretário de Assuntos Estratégicos, a decisão do ministro Nelson Jobim de introduzir na Estratégia Nacional de Defesa a proibição de aderir ao Protocolo Adicional e o silêncio do presidente da República sobre o tema encorajam as desconfianças de que o Brasil tem intenções de desenvolver armas nucleares como forma de exercer a soberania nacional. No fundo, essas declarações e a posição do Itamaraty no Conselho de Segurança estão nos conduzindo à situação de que o "Irã de hoje é o Brasil de amanhã".
Só um nacionalismo estreito e retrógrado poderia levar-nos a pensar que o TNP viola a soberania nacional, pois o seu conteúdo é análogo ao artigo 21 da Constituição Federal, que determina que "toda a atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos". Assegurar nossa soberania não vai decorrer da posse de armas nucleares, mas de um desenvolvimento nacional, científico e tecnológico autêntico.
* José Goldemberg é professor da Universidade de São Paulo (USP), foi secretário de Ciência e Tecnologia da Presidência da República e é presidente de honra da SBPC.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 21/6/10.
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